Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Inês N. Almeida

Inês N. Almeida

Review: "Teoria das Catástrofes Elementares"

Inês Nobre de Almeida, 10.10.24

20241008_085009.jpg

4

Este livro agarra-nos desde o primeiro capítulo com uma história sobre o atropelamento da mãe da personagem principal. Desde logo, Rita Canas Mendes demonstra o que é, para mim, o maior feito desta obra: cada capítulo podia ser um livro inteiro. O leitor é de imediato transportado para aquelas histórias e queremos saber mais sobre o que está a acontecer a cada personagem.

No entanto, foi o segundo capítulo que me fez não conseguir parar de ler (a não ser quando tive de interromper para ler outro livro por causa de trabalho - daí ter demorado um bocadinho mais a partilhar aqui a review).

Nesse segundo capítulo, a personagem principal está com o pai no Registo Civil. Já tiraram uma senha e estão à espera de ser chamados. Quem nunca esteve numa situação dessas de espera ansiosa em que o tempo parece não querer avançar? A forma como a Rita Canas Mendes integra a contagem do número das senhas que vão sendo chamadas com as divagações do pai demonstra uma mestria do uso da palavra que é invejável. Exactamente pelo modo como o capítulo está escrito, de imediato, somos transportados para aquela sala, para aquela espera, e nos revemos no que está a acontecer. 

Mas este é só o princípio de uma obra muito mais abrangente. "Teoria das Catástrofes Elementares" aborda temas como relações familiares complexas, parentalidade, colonialismo e relações históricas com África. Sobretudo, um pouco ao longo de todos os capítulos, este livro fala do que é ser mulher nos anos 80 e 90 mas também ainda hoje em dia. Abusos nas mais diversas relações. No sistema.

Um dos capítulos mais poderosos é um autêntico grito do Ipiranga. Não posso escrevê-lo aqui todo, mas deixo um cheirinho do que é este capítulo XXXI: "Não percebo como é que não está tudo aos gritos na rua. Eu estou a passar-me com este estado de coisas... Na sexta-feira, na manifestação, a dada altura cantava-se 'mulheres em luta, contra os filhos da puta'. Mas eu não tenho nada contra as putas, o problema são os filhos, os que se tornam agressores. Onde é que estão os pais nessa história? - Foram eles que os ensinaram? Como é que alguém passa de criança a criminoso? Como é que uma rapariga se defende de uma alcateia? Porque a alcateia está a toda a volta - os agressores, os polícias, os juízes, os pais e, às vezes, também as mães. Todos achando-se no direito de subjugar o outro, ou melhor, a outra. Não importa a idade, a beleza, o estatuto social. Ser-se mulher, já para não falar de uma que pertença a uma minoria, é estar-se à mercê. Podem ser virgens em comunidades religiosas ou putas em bordéis, a opressão está sempre lá. Eu sei que a mãe está um bocado chocada por me ouvir falar assim, mas não aguento mais. A revolta com este sistema é tão grande, tão grande. Nós vivemos com isto tudo, carregamos os traumas todos os dias e ainda temos que aturar piropos nojentos na rua. Agora que finalmente estamos a falar disto, com o MeToo, o foco não deve estar no Me, e sim no Too. O problema não é só meu ou só da mãe, é de todas. O problema é de todos, e em todo o lado, no mundo inteiro. A mãe tem de vir marchar comigo no dia 8 de março. Temos de fazer barulho. Isto não pode continuar assim. Estou farta, farta, farta."

_________________________________________________________________________________________________________________

4

 

This book grabs our attention from chapter one with a story about the main character's mother being run over. From that moment on, Rita Canas Mendes shows what is, for me, the best thing about this book: each chapter could be its own entire book. The reader is immediately transported to those stories and we want to know more about what happens to each character. But it was chapter two which made me not want to stop reading (unless I had to interrupt to read something for work).

In that second chapter, the main character is with her father in A Civil Registry Office. They have a number and are waiting to be called. Who among us has never been in those situations when the more you want the time to pass, the more it seems to drag? The way Rita Canas Mendes weaves the counting of the numbers as people are being called with the father's rambling shows a mastery of the written word which is enviable.

But this is only the beginning of a much larger work of fiction. "Teoria das Catástrofes Elementares" goes onto themes such as complex family dynamics, parenthood, colonialism and historical ties to Africa. Most of all, throughout all the chapters, this book talks about what it's like being a woman in the 80s and 90s as well as today showcasing several types of abuse in different relationships and the system itself.

Written only in Portuguese for now, I do hope this book gets translated to more languages so other people can experience it. I believe every woman in the world will relate to even if just one of the situations portrayed in the book and that is also why it's so important.

Review: "Unbelievable"

Inês Nobre de Almeida, 01.08.24

 

20240728_084421.jpg

4.5/5

 

Mais uma leitura incrível terminada, por isso, abro excepção e escrevo dois posts com reviews um a seguir ao outro (na semana passada foi o "Frankenstein"). Prometo que para a semana que vem tento escrever algo diferente. 

Não parti para este livro às cegas. Na verdade, quando o vi numa das milhentas lojas de caridade que há em Londres decidi agarrá-lo por já ter visto a mini-série que está na Netflix inspirada por ele (a capa do livro, infelizmente, é a fazer alusão à série). Posto isto, já sabia ao que ia. Mesmo assim, este livro tornou-se numa leitura muito mais intensa do que esperava por uma razão simples: vários pontos de vista.

Mas antes de entrar em detalhes, o resumo desta história que é não-ficção (o que a torna ainda mais dura de ler): Marie, 18 anos, foi à Polícia dizer que a meio da noite um homem lhe tinha entrado em casa, que a tinha prendido usando atacadores dos sapatos dela, que a tinha violado repetidamente e tirado várias fotografias dela despida que ameaçou partilhar na internet caso ela alguma vez o denunciasse. No decurso dos vários testemunhos que se vê forçada a dar, alguns detalhes do sucedido começam a falhar e a Polícia duvida da veracidade da história. Pressionada pelos detectives, Marie volta atrás no que disse. Três anos mais tarde, duas detectives de dois Estados diferentes (a história é passada nos Estados Unidos) começam a notar semelhanças em casos de violações que ambas estão a investigar. Eventualmente, descobrem o caso de Marie e a queixa que foi retirada mas nunca realmente destruída.

Esta foi uma história horrível de ler mesmo já sabendo ao que ia. Até porque teve uma grande diferença em relação à série que é sobre o que vos quero falar para não entrar em spoilers: Ponto de Vista. Em qualquer história que escrevam ou leiam o Ponto de Vista é um elemento essencial. Faz toda a diferença na forma em como a história é percepcionada. Uma história contada em terceira pessoa, vista de fora, não é o mesmo que uma história contada em primeira pessoa, em que sentimos o mesmo que as personagens estão a sentir. Há outra coisa a ter em atenção: mesmo numa história contada em terceira pessoa, quem é o foco? E aí está a grande diferença entre a série e este livro incrível - há uma pessoa que na série apenas no final é mencionada. No livro, acompanhamos um percurso essencial para compreender o que acontece de uma outra forma (não vou entrar em detalhes para o caso de irem ver ou ler. Podem perguntar depois!).

 Quem me conhece sabe que a não-ficção enquanto género de leitura é uma preferência muito recente para mim - só comecei a ler mais frequentemente há dois anos, embora na faculdade tenha lido o incrível "A Sangue Frio" do Truman Capote que, não sei como não me fez logo ir à procura de mais livros do género. Sem dúvida, que é uma preferência que veio para ficar, embora algo paradoxal: Em histórias dramáticas e muito intensas como é o caso do "Unbelievable" é bom às vezes abstrairmo-nos de que o que estamos a ler de facto aconteceu a alguém. Por outro lado, é a crueza da realidade que torna a leitura tão vívida. 

_________________________________________________________________________________________________________________

 

4.5/5

 

I finished another amazing book, so, I am making an exception and writing two review posts in a row (after "Frankenstein" last week). I promise next week I will try to write something different.

I didn't jump blindly into this book. In fact, when I saw it at a charity shop, I grabbed it because I had already watched the mini-series on Netflix (the cover of the book, unfortunately, displays an image of the show). That said, I knew what I was getting myself into. Still, this was a much more intense read than I was expecting for one simple reason: the point of view. I'll come back to that.

First, the story: In this non-fiction book (which makes it an even more difficult read), Marie, 18, went to the Police to tell them that a man had broken into her home in the middle of the night, tied her using her own shoelaces, raped her repeatedly and taken several photos of her which he threatened to post online if she ever talked to the Police. Over the course of several hours, some details of what happened start to not add up and Police questions the truth of her claims. Pressured by the detectives, Marie recants her story. Three years later, two detectives from two different States (The story happened in the US)  start noticing similarities between rape cases they're both investigating and eventually that leads them to Marie's report, never filed but never destroyed either.

This was a horrible story to read, even knowing what I was getting myself into, especially due to a huge difference compared to the show: point of view. In every story you read or write, point of view is an essential element. It makes a huge difference in terms of how the story will be perceived. A third person point of view, a story seen from the outside, is not the same as a plot as seen from a first person perspective, in which we feel what the characters feel. Even in a third person POV, who is the focus? That was the big difference between the adaptation and this Pulitzer-winning book. One person only scarcely mentioned in the show by the end, in the book, gets a storyline, we follow their life and get to know them a lot better (I'm not going into details to avoid spoilers. Ask me later in the comments!)

Those who know me know that non-fiction as a reading preference is very recent for me - I've only read non-fiction consistently in the last two years although in university I read the amazing "In Cold Blood" by Truman Capote and I don't know how that didn't immediately make me want to go look for other great narrative non-fictions. Without a doubt, this is a genre I will keep reading, although it gives me mixed feelings: in tragic stories such as "Unbelievable" it would be good to forget the fact that what I am reading actually happened to somebody. At the same time, it's the cruelty of that reality which makes for such a vivid read.